Como já escrevi, o
fantasma do câncer participa da minha vida, me assombrando há muito tempo.
Muitas vezes teve o papel de coadjuvante, junto com tudo mais que envolve
viver, como rotina, trabalho, família, alegrias, tristezas, decepções e
felicidade. Apesar de não ser o ator principal, sempre esteve lá, me
incomodando.
Eis que um dia meu
pai foi diagnosticado com câncer de próstata. Passei então a visitar um
urologista regularmente desde os 40 anos, quando descobri que passei a ser um
caso de atenção, devido a uma possível predisposição genética.
Em uma das revisões
anuais, à época aos 40 e poucos anos, tive um primeiro resultado de PSA fora do
padrão para a idade. Lembro até hoje, era 1,6. À época, com tudo mais estando
dentro da normalidade (incluindo o exame de toque), passei a ser um caso de
mais atenção ainda.
É importante
registrar que a predisposição genética pode ou não resultar em câncer,
existindo muitos casos de não ocorrência em descendentes. Caso o seu pai ou o
seu avô tenham tido, não significa necessariamente que você terá. Caso você tenha algum ascendente com câncer
de próstata, não hesite, comece a consultar um urologista a partir dos 40 anos.
Passaram-se alguns
anos com a rotina de revisões anuais, quando, aos 50 anos, tive um primeiro
incremento mais significativo do nível de PSA, que passou para pouco mais de 4
(os níveis vinham variando lentamente, de 1,6 até 2,6).
Pela primeira vez
senti um medo mais real do que fantasmagórico da possibilidade de um
diagnóstico de câncer. Passei pela primeira vez pelo que chamo de ritual de diagnóstico,
que resultou em um desfecho feliz de ausência de neoplasia.
Três anos depois, o
ritual se repetiu a partir de um resultado de PSA de 6,7, quando então o ritual
terminou com um resultado nada desejado: carcinoma, ou seja, câncer.
Coisas
tão ruins como esta, um diagnóstico de câncer, sempre eram infortúnio de outras
pessoas, até que um certo dia soou um
alarme, o chão se abriu e a pessoa diagnosticada era eu.
Cheguei a pensar que
este parágrafo fosse desnecessário, um excesso de redundância, mas resolvi
escrevê-lo. Trata-se de ressaltar mais uma vez a importância da visita periódica,
anual, ao urologista. Por mais óbvio que possa parecer, por mais natural que
soe, e por mais inconcebível que seja para mim, ouve-se falar bastante que
muitos homens a partir dos 50 anos simplesmente não visitam um urologista regularmente.
Inacreditável!
É imprescindível registrar
(mais uma vez) que mesmo com o diagnóstico confirmado, eu não sentia
absolutamente nada diferente, nenhum sintoma físico. Há homens que pensam que
só deveriam procurar um urologista se algo estiver anormal, como, por exemplo, sentindo
algum tipo de ardência ou dificuldade para urinar. Absoluta bobagem,
não é verdade.
De volta ao ritual
do diagnóstico, meu objetivo em descrever este processo, com suas etapas, é o
de esclarecer e explicar como funciona a investigação do câncer de próstata.
Não sou médico e o que escrevo neste capítulo não tem autenticação ou
embasamento científicos, baseia-se no que aprendi com a minha experiência
pessoal, que se diga de passagem, já não é tão pequena.
Em consulta, o
médico solicita um exame de PSA (um exame de sangue); conforme o resultado, e de
acordo com seus critérios, pode realizar o (absurdamente temido) exame de toque
retal. Talvez pela cultura machista, alguns homens temem este exame como se
fosse uma ameaça à sua masculinidade. Confortável não é, mas em certas
situações é imprescindível.
Alguns indicadores
avaliados em conjunto pelo médico levam a um possível aprofundamento do
diagnóstico, como idade, predisposição genética, nível de PSA e avaliação do
exame de toque. A sequência de investigação é feita com vários passos, caso
alguma suspeita seja levantada.
Foi o ritual que eu
segui todas as vezes e acredito, portanto, que seja o padrão para todos os
casos. Como já citei, eu falo de experiências pessoais, este texto não é um compêndio
médico, e podem existir urologistas que procedam de forma diferente.
O primeiro exame é
uma ecografia de abdômen e de bexiga, para o qual, entendo eu, um dos
principais objetivos é o de verificar o tamanho da próstata, alguma possível anormalidade
mais destacada e o resíduo de urina que fica na bexiga após urinar. É um exame
relativamente rápido e a espera pelo diagnóstico nunca me causou grande
desconforto ou impaciência. Eu sempre fazia este procedimento anualmente em um
check-up geral, então foi algo rotineiro para mim.
Na sequência,
marca-se nova consulta com o médico. Nesta nova visita, pode ser solicitada uma
ressonância magnética da próstata. Eu já tinha feito ressonância antes, alguma
investigação relacionada a uma lesão causada por corrida, se não me engano.
Muitas pessoas queixam-se
de claustrofobia pelo “tubo” da ressonância, mas isto não tinha me incomodado.
Na primeira vez que me foi solicitada a ressonância da próstata, lembro que
pensei “não sei porque nas outras vezes não foi pedida, só para eliminar
qualquer dúvida”.
Agendei o exame,
cheguei no local, segui o procedimento de espera pelo registro, fiz o registro,
esperei pelo exame, tic, tac, tic tac… até ser chamado. Roupa trocada, com
aquele avental de laboratório, por curiosidade eu perguntei para a assistente:
-Quanto tempo leva?
Eu perguntei
pensando em alguma coisa do trabalho, se daria tempo de estar de volta ao
escritório em 45 minutos ou uma hora (era o que passava pela minha cabeça).
Quando veio a
resposta:
-Esta ressonância é
uma das mais demoradas. Leva entre 40 e 50 minutos.
Demorei um pouco
para assimilar, até pensei que tinha ouvido errado. Pedi confirmação. Era isto
mesmo. Nunca fui claustrofóbico, quando tinha feito uma ressonância de outro
tipo antes, era coisa de 10 a 15 minutos, não lembro de ter tido nenhuma
sensação ruim.
Desta vez, contudo,
os tais 40 minutos me impactaram. Lembro como se fosse hoje da sensação que eu
comecei a sentir quando a maca deslizava para dentro do “tubo”.
Logo antes de entrar
tive outra “surpresa”, quando me foi dito que eu não poderia mexer as pernas
nem movimentar o abdômen de forma alguma, ou teria que começar tudo novamente.
Tossir, nem pensar.
A sensação de entrar
no “tubo” para ficar por 40 ou 50 minutos, já com vontade de mexer as pernas
desde o início, não é algo confortável de se enfrentar. Pode parecer exagero,
até frescura, então proponho que você, leitor, deite-se agora e fique 5 minutos
sem movimentar as pernas, ficando totalmente imóvel. É fácil?
O pensamento que
começou a me passar pela cabeça, assim que o exame começou, com aquele barulho
de turbina e batidas misturado com um zumbido elétrico, era “quanto tempo será que já passou?”
Tentei começar a contar os segundos, sem saber se minha contagem era rápida ou
lenta. Quando eu chegava lá pelos 200 significaria que teriam se passado 3
minutos e pouco. Ou será que era bem menos? Quanto tempo será que ainda
faltava? Junto vem uma vontade quase incontrolável de mexer as pernas…como
seria bom dobrar os joelhos! Tenho que pensar em outra coisa…
Olho para cima, tem
um tubo a centímetros dos meus olhos, que parece estar ficando menor. Tentava
encher o pulmão de ar e parecia que não dava.
Aquela foi a minha
primeira ressonância de próstata logo depois do primeiro “salto” do nível de
PSA. Eu estava muito ansioso pelo resultado, mas mesmo assim durante o exame eu
pensei mais de uma vez em apertar a campainha e pedir para interromper. “Azar,
não vou conseguir aguentar até o fim, vou sair daqui e depois vejo o que fazer”,
era o que eu mais pensava. Acho que foram os 48 minutos mais longos da minha
vida (foi o tempo que me disseram que demorou, quando eu perguntei depois).
Aí veio o próximo
passo do ritual, que é esperar pelo resultado, ou seja, o laudo da ressonância.
Como eu sempre fui impressionado e assombrado pelo assunto, sendo a primeira
vez, a espera foi muito desconfortável, me deixando muito impaciente. O laudo
seria enviado por e-mail, e a 2 dias do prazo prometido passou a ser bem tenso
olhar a caixa de entrada do correio eletrônico, esperando pelo tal laudo (esperar
resultados, diga-se de passagem, depois acabou virando meio que rotina para
mim).
No dia que apareceu
o remetente na caixa de entrada, lembro bem da sensação, aumento dos batimentos
cardíacos e respiração mais pesada, na mais perfeita manifestação clássica de
ansiedade.
Este primeiro laudo
falava algo como haver uma sugestão de sinais de alterações nas células e
tecidos, as quais não podiam ser identificadas. Indicava, portanto, que poderia
haver algo, mas não era possível confirmar.
Como isto se
caracterizava como uma suspeita a ser investigada mais a fundo, o próximo exame
indicado pelo médico foi a biópsia.
Na linha de
esclarecer como as coisas funcionam, eis como é uma biópsia de próstata: é um
exame transretal realizado com auxílio de ultrassonografia, cujo objetivo é,
literalmente, a retirada de pedaços da próstata para análise patológica de amostras
de tecidos.
O objetivo de uma
biópsia é o de verificar se existem células diferenciadas, ou seja, diferentes
das células normais da próstata – sugerindo câncer. São cerca de 15 pedacinhos coletados,
um pouco menos, um pouco mais.
O exame em si não
causa grandes desconfortos, quando realizado com sedação, o que na verdade,
para nós leigos, tem o mesmo efeito de uma anestesia geral.
A preparação é
relativamente simples, toma-se um antibiótico a partir da véspera e
posteriormente por alguns dias, além de se fazer jejum de 8 horas antes do
exame. E só. Na hora do exame, apagão geral, e quando se abre os olhos, passou.
Nenhuma dor, nenhum desconforto.
A não ser
quando…
Na ocasião da
segunda biópsia que fiz, devido a mais uma elevação de PSA e a uma suspeita
mais significante detectada em uma nova ressonância (mas ainda não conclusiva),
eu tinha resolvido buscar outra opinião, trocando de médico, seguindo uma
recomendação de um conhecido. O procedimento sugerido por este médico, contudo,
me deixou um tanto traumatizado.
Segundo ele, que se
diga de passagem é um urologista muitíssimo conceituado, o ideal seria fazer a
biópsia em um laboratório onde o equipamento de ultrassom era melhor, com
imagens mais nítidas, o que aumentaria a probabilidade de encontrar visualmente
alguma alteração para fazer a coleta nos pontos certos. Em outras palavras,
haveria uma chance maior de conseguir achar os pontos indicados pela
ressonância.
Só que…
Como a biópsia seria
feita em laboratório, não havia estrutura hospitalar, e portanto, não haveria
anestesista disponível. Em outras palavras, a biopsia teria que ser feita sem
sedação.
A escolha era minha,
eu poderia optar por fazer em hospital, como na ocasião anterior. Na opinião
dele, contudo, a visualização da ultrassonografia seria melhor se fosse
realizada no local onde ele indicou, e talvez tivesse sido por este motivo que
nada tivesse sido detectado na primeira biópsia.
O que faz um leigo
nessas horas, ansioso por uma biópsia mais precisa? Aceita a sugestão. Aceitei.
Se a ressonância foi
difícil, os leitores podem tentar imaginar uma biópsia sem sedação, com o
paciente totalmente desperto e nenhuma anestesia. Eu confesso que que é
embaraçoso demais descrever o exame em detalhes, mas a sensação de estar
consciente e sentir quando pedaços são extraídos, com um equipamento que faz
cortes com impactos, é indescritível.
Já ouvi de mulheres e
li que a biópsia de mama é similar, por ser feita em laboratório, sem sedação.
Obviamente não consigo e não pretendo comparar, talvez seja igualmente algo
próximo a uma sessão de tortura medieval…
Depois deste exame,
veio uma nova espera (impaciente) pelo resultado. Impactado pelo aumento do PSA
e pela sugestão mais contundente da ressonância de que algo poderia estar
errado, a espera pelo laudo da biópsia foi mais tensa ainda. Lembro muito bem
do dia em que chegou o e-mail com o resultado, eu estava na academia fazendo
musculação.
Ao ver a mensagem,
sentado em um equipamento, lembro claramente quando eu estava abrindo o PDF, a
ansiedade mais forte do que na primeira vez. Uso óculos de leitura, mas
obviamente não os tinha na academia. É bem difícil ler no celular, ainda mais
sem óculos, as letras ficam todas embaralhadas, tive que dar zoom na tela até
encontrar as palavras tão desejadas: “Ausência
de neoplasia”. Recordo nitidamente que fiquei de pé e percebi que estava
tonto, não tem como descrever a sensação. Foi
uma das melhores que eu consigo lembrar de toda a minha vida, aquela de saber
que não tinha câncer.
Neste meio tempo
entre a ressonância e o laudo final da biópsia eu lembro que senti bastante o
impacto emocional, a ponto de deixar de fazer algumas coisas por absoluta falta
de motivação, sentido até uma certa prostração para as atividades do dia-a-dia.
Se eu olho hoje minhas estatísticas de corrida do GPS, vejo um intervalo em que
fiquei sem correr por uns dois meses naquele período, o que confirma que nem
uma das coisas que mais gosto eu tinha vontade de fazer.
Voltando ao médico
com o laudo da biópsia, bem feliz, recebi uma explicação bem detalhada, que me
deixou desanimado. Como já comentei, eu fui aprendendo muitas coisas ao longo
da minha jornada, sendo que alguns destes aprendizados nem sempre foram
agradáveis.
Em resumo, aprendi
que:
O fato de uma biópsia dar resultado negativo não significa que não haja
alguma coisa, significa apenas que alguma coisa não foi encontrada. Significa
apenas que as amostras coletadas não têm células cancerígenas.
O fato de que as
amostras estejam livres de células cancerígenas pode ser casual, visto que em
algumas situações é muito difícil que a coleta seja feita exatamente na região
indicada pela ressonância. Em casos onde um câncer não esteja espalhado por
toda a próstata, pode acontecer esta situação.
Leigamente falando,
são possibilidades meio aleatórias. É claro, existe um ponto positivo em um
diagnóstico negativo, visto que a próstata inteira não está tomada pelo câncer.
Não significa, contudo, que não se tenha a doença.
Que merda!
Não me livrei dos
fantasmas, nem com uma biópsia negativa. A conclusão é que eu teria que
continuar um monitoramento de PSA. Mesmo sendo relativamente alto, se o nível não
variasse, não haveria motivo para preocupações. Era questão de fazer isto
semestralmente e manter a rotina anual de consultas.
E assim foi, segui
fazendo exames de PSA a cada seis meses. Níveis estáveis, sendo que em um dos
exames houve até redução, pequena é verdade, mas era uma redução.
Que coisa boa. Foram
dois anos em que os fantasmas tinham virado fantasminhas camaradas e eu quase
esquecera deles.
Depois da
experiência com o último médico, resolvi trocar novamente.
Busquei novas opiniões
e indicações de conhecidos e marquei nova revisão, com um novo profissional.
Novo ciclo, novo exame de PSA. Intimamente eu tinha convicção de que, com a
última redução medida, era um ritual que se encerraria no início, já que o
exame de toque não indicou nenhuma alteração (neste caso, dado o histórico, o
médico fez o exame de toque já na primeira consulta).
O resultado deste
último exame de PSA foi inesperado. De 4,2 cerca de seis meses antes, o nível
passou para 6,7. Algo realmente inesperado e suspeito estava acontecendo. Eu
soube deste resultado no dia 23 de julho de 2019, quando foi dada a largada
para minha jornada.
Exposto o meu trauma
passado sobre a biópsia, o meu novo médico me tranquilizou: “não se costuma fazer mais biópsia sem
sedação”. Ele recomendou a ressonância em uma instituição que tinha uma
tecnologia que permitiria, se necessário, usar as imagens da mesma em fusão com
ultrassom em uma posterior biópsia, que seria assim mais precisa. Era uma
analogia a usar as imagens da ressonância como um mapa de GPS para navegar
quando fosse realizada a biópsia.
Para esta nova
ressonância, contei com ajuda de um profissional para tratar da ansiedade e,
por recomendação dele, me preparei com um ansiolítico; devo confessar que a
experiência foi muito mais aceitável. Foi pior a antecipação do que o exame. A
ressonância em si pode ter sido menos sofrida, porém o mesmo não posso dizer do
resultado da mesma.
Depois de nova
espera pelo laudo com uma boa dose de ansiedade e impaciência, angustiante
devido ao resultado do PSA alto, veio o laudo, desta vez com uma indicação de alta probabilidade de neoplasia (câncer), dado
um diagnóstico representado por uma sigla de PI RADS-4.
Sem entrar em
detalhes técnico-científicos, que não domino, um PI-RADS é uma escala internacional que vai de 1 a 5, sendo que 1
representa uma probabilidade muito baixa e 5 muito alta de diferenciação de
células, ou em outras palavras, de haver um câncer.
Literalmente, um PIRADS-4 significa “clinicamente um câncer
significativo é provável”.
Para mim, este
resultado soou como determinístico. Embora eu tentasse me apegar a uma chance
de não ter câncer (ainda não era clinicamente uma confirmação, pois dependia de
nova biópsia) eu comecei a me preparar para aceitar que era provável que eu
tivesse. Por mais incrível que possa parecer, a dúvida talvez fosse tão angustiante
quanto a possibilidade de confirmação.
Uma possibilidade
alta não era ainda um diagnóstico comprovado, mas o embate mental era muito
pesado. Ao mesmo tempo em que eu começava a me preparar para a fatalidade, uma
voz de esperança raquítica e desidratada ainda tentava me dizer que poderia não
ser nada.
Quando eu percebia,
estava fantasiando abrir o e-mail do laudo e ler “ausência de neoplasia”, pensando em repetir a sensação já vivida
anteriormente. Que bom que vai ser, pensava eu. Em seguida, vinha
outro pensamento mais forte, como o típico clichê do diabinho falando no outro
ouvido: “mas como não vai ser nada com este resultado da ressonância? É
claro que tem alguma coisa”.
É impressionante
como o inconsciente humano (ou pelo menos o meu) não consegue lidar bem com
qualquer ameaça ao bem-estar ou à vida. E é exatamente isto que o arquétipo de
câncer representa, uma lembrança da infalibilidade da morte. Por mais que se
tente racionalizar sobre os avanços da medicina, sobre as probabilidades de cura
quando detectado no início, o inconsciente é mestre em perturbar quando
incomodado. Por mais estranho que possa parecer, eu não sentia medo de morrer,
apenas de ter câncer.
Se é que algum fato
positivo pode ser citado neste novo ciclo do ritual, é que o e-mail com o laudo
chegou inesperadamente dias antes da previsão. Eu não estava sequer esperando, quando
em uma segunda-feira pela manhã, no trabalho, apareceu o resultado na tela, dentre
outros e-mails do dia-a-dia. Até demorei um pouco para perceber o que era, de
tão inesperada que foi a chegada. Inesperada também foi a minha reação, quase
que automática.
Não sei como, ou
talvez por “já saber”, abri
imediatamente o PDF, sem hesitar, e na tela maior do computador foi mais fácil
localizar o resultado na parte final. Logo achei as palavras “carcinoma”
e “neoplasia”. De imediato, sabendo sem querer aceitar, fui
para o navegador e googlei as palavras.
Foi então que senti
uma sensação jamais antes experimentada na minha vida, diametralmente oposta
àquela quando eu tinha lido um resultado que dizia que eu não tinha câncer.
Agora eu sabia que tinha.
Lembro bem que a
tela de resultados do google parecia toda borrada, e só apareciam para
mim, como se brilhassem destacadas, as expressões “carcinoma é um tipo
de câncer que começa em células…” e “como outros tipos de
câncer, carcinomas são células que se desenvolvem sem controle…”
Honestamente eu
tenho dificuldades em expressar com palavras um momento como aquele, o qual não
desejo para ninguém. Acredito que não exista pessoa que não seja profundamente impactada
pela revelação de que tem câncer. Tentando revisitar aquele instante, não
consigo descrever o sentimento. Obviamente é um dos momentos da vida que jamais
serão esquecidos, não tem como.
Aquela
segunda-feira, 02 de setembro de 2019, jamais será esquecida por mim, até o fim
da vida. Eu não sei se é imaginação minha ou se é real, mas parece que um dos
pensamentos que me passou pela cabeça foi de alívio, pois pelo menos este tipo
de ritual iria chegar ao fim, acabaria. O que me confortava era a possibilidade
de ter um diagnóstico no início do desenvolvimento da doença e que a
probabilidade de cura, neste caso, seria muito alta. Por outro lado, esta
questão de probabilidade alta de cura é bem relativa para quem tem a doença,
vou comentar sobre isso no próximo capítulo.
Lembro bem que
pensei em como eu iria contar para a minha esposa e meu filho. Em seguida
pensei no meu pai, contar ou não contar? Ele já passou por isto, será que eu
deveria contar? Estranho como um momento tão impactante deixe na memória
sentimentos tão sem detalhes, como se fossem sentidos nas entranhas, mas com as
imagens fora de foco.
Bem, o ritual
precisava continuar.
O próximo passo era
retornar ao médico e definir o tratamento, que pelo que eu já tinha me
informado, provavelmente seria uma cirurgia de remoção total da próstata.
Na consulta de
retorno ocorreu outro momento marcante. Foram apenas dois dias entre a ciência
pelo laudo e a consulta. Ele já tinha recebido o resultado diretamente do
laboratório, então me perguntou se eu já o tinha lido. Sim, já sabia do
resultado, disse a ele.
Mesmo assim, ele
seguiu o protocolo, explicando o resultado, e ao final falando a expressão “…é
um câncer”. Mesmo que eu já soubesse, foi impactante ouvir aquilo.
O laudo de uma
biópsia de próstata também é baseado em uma escala, chamada Gleason.
É bem complicada
para um leigo como eu explicar, mas, para resumir, é uma escala entre 2 e 10, sendo
que uma pontuação até 6 pode ser considerada de baixo grau. 7 é considerado
intermediário e, entre 8 e 10, de alto grau, ou câncer de alta agressividade.
De acordo com a
biopsia, fiquei classificado como Gleason 7 (3+4).
Baseado em um
cálculo de que o 7 de meu exame resultou de 3 + 4 (que é um resultado diferente
do que 7 resultando de 4 +3), a explicação do médico foi de que se tratava de
um câncer de intensidade média, e de acordo com os outros parâmetros relatados
pelo laudo, teoricamente estaria contido, restrito à próstata e, provavelmente,
não teria afetado outros tecidos externos.
A conclusão é que,
dentre os piores resultados, este era o menos ruim. Quer dizer, se fosse
Gleason 6 ou menos, talvez nem fosse necessário tratar, poderia ser apenas
acompanhado (quando ele falou isto eu pensei comigo mesmo, “ainda bem que
não é 6, pois a aflição persistiria por mais tempo”).
Porém…
Seguiu-se a
explicação de que mesmo com a retirada completa da próstata e das vesículas
seminais, estando os nódulos restritos e contidos (eram 3 tumores na verdade), existe
uma probabilidade de que alguma célula possa ter “escapado” para a corrente
sanguínea e contaminado algum outro tecido, deixando algum resíduo de câncer
mesmo após a remoção completa. Neste caso a sequência do tratamento deveria ser
radioterapia.
Foi aí que eu pensei
comigo: “não acredito, quer dizer que nem tirando tudo o pesadelo vai
acabar? ”. Com esta eu não contava, pois eu já me preparava para encarar a
cirurgia (mesmo com o medo das possíveis sequelas) e logo depois ficar livre.
Fiquei abatido, e muito.
Para esclarecimento,
o médico apresentou as opções de tratamento, sendo uma delas a realização de
radioterapia ao invés da cirurgia de remoção. É um processo menos radical do
que a remoção total da próstata, porém é mais longo, incerto, sujeito aos
mesmos riscos e igualmente sem resultado garantido.
A recomendação dada,
comum para pacientes na minha idade, foi pela cirurgia, embora a decisão final
sobre o tratamento fosse minha.
Optei pela cirurgia,
e felizmente pelas circunstâncias, pude fazer a opção pela tecnologia robótica,
que é menos invasiva, diminuindo o tempo de recuperação e reduzindo riscos de
sequelas.
E os riscos, quais
são?
Isto foi deixado bem
claro nesta consulta, foram esclarecidos de forma bastante protocolar, mas
empática. São dois grandes riscos,
incontinência urinária (e necessidade de uso de fraldas) e impotência sexual,
também chamada de disfunção erétil. O primeiro é devido à uretra ser “reconectada”
à bexiga junto ao esfíncter, e o segundo pela chance de afetar um nervo
responsável pela ereção. Convenhamos que para homem nenhum qualquer destas
perspectivas pode ser encarada com indiferença.
De qualquer maneira,
o ritual ainda não terminava aí. Antes da cirurgia 4 exames pré-operatórios
deveriam ser feitos, 2 tomografias (abdômen e tórax), uma cintilografia óssea e
exames de sangue, além de uma consulta para obter um atestado de cardiologista.
As tomografias tentam identificar se algum órgão apresenta alguma alteração, e
a cintilografia óssea busca avaliar se há alguma suspeita de câncer nos ossos.
Com uma confirmação
de câncer, muito abatido, foram duas novas esperas por laudos que testaram ao
limite a minha resistência mental.
Imagine, leitor,
pensar na possibilidade de ter uma metástase para os ossos ou para o pulmão…é
muito assustador. Felizmente, no meu caso, estes novos exames apresentaram
resultado negativo. Em certo momento cheguei a pensar que era um alívio ter um
câncer só na próstata. De certo modo era.
***
A partir do momento
que eu tomei conhecimento da confirmação do câncer, não consigo descrever o
sentimento. Entrei em uma espécie de hibernação acordado, mesmo tendo tentado
continuar com a vida normal, indo trabalhar, indo à academia fazer musculação e
correndo. Parece que algumas vezes eu via o mundo passar em câmera lenta, às
vezes dava uma sensação estranha de não conseguir se conectar com o presente. É
muito complicado de descrever, mas tem momento em que parece que se é tomado
pelo pensamento de uma forma tal que nenhum outro sentido funciona direito.
Pensamento na cirurgia, nas possíveis sequelas, no que podia dar errado…e
se der tudo certo, quando a vida voltaria ao normal?
É muita carga, nesta
altura o fantasma virou um demônio.